Há comparações históricas que são fáceis — e por isso mesmo perigosas. Chamar “nazis” a governos contemporâneos pode soar moralmente satisfatório, mas raramente é intelectualmente rigoroso. Ao mesmo tempo, há silêncios que se tornam cúmplices quando a História começa a repetir padrões que julgávamos definitivamente ultrapassados.
O que se passa hoje em Gaza coloca-nos precisamente nesse ponto de tensão: entre a analogia abusiva e a recusa em reconhecer sinais que a História conhece demasiado bem.
A normalização da morte em massa
A morte de dezenas de milhares de civis palestinianos, incluindo um número esmagador de crianças, deixou há muito de ser um acidente trágico para se tornar um dado estrutural da guerra. Quando a destruição sistemática de bairros inteiros, hospitais, universidades e infra-estruturas básicas é enquadrada como “inevitável” ou “necessária”, entramos num território moral onde a vida humana perde valor político.
Este não é um território exclusivo de um regime ou de uma ideologia. É um território histórico. A Europa do século XX aprendeu — à custa de milhões de mortos — que a normalização da morte em massa começa quase sempre com a sua justificação racional.
Crimes de guerra como instrumento político
O cerco prolongado a Gaza, a punição colectiva de uma população inteira e a destruição deliberada das condições mínimas de sobrevivência violam princípios elementares do direito internacional humanitário. Não se trata de opinião: trata-se de normas consagradas após a Segunda Guerra Mundial precisamente para impedir que a razão de Estado se sobreponha à dignidade humana.
Quando essas normas são suspensas na prática, mesmo que não formalmente, o que está em causa não é apenas a legalidade de uma operação militar, mas a erosão do próprio conceito de limite moral.
A deslocação forçada como “solução”
É neste contexto que o artigo do Público, assinado por António Rodrigues, ganha uma relevância particular. Ao revelar que Israel e os Estados Unidos sondaram a possibilidade de transferir palestinianos da Faixa de Gaza para a Somalilândia — incluindo estudos de custos e cenários estratégicos — o texto expõe uma lógica profundamente inquietante: a de tratar uma população civil como um problema logístico a deslocar
A História conhece bem este tipo de raciocínio. A ideia de resolver conflitos políticos através da remoção física de populações não nasceu no Médio Oriente nem no século XXI. Foi usada, testada e, mais tarde, julgada como crime. Não por falhar logisticamente, mas por falhar moralmente.
Não é necessário acusar Israel de ser um regime nazi para reconhecer que esta lógica se aproxima perigosamente de soluções que a Europa do século XX aprendeu a temer.
Comparar mecanismos, não regimes
Importa ser claro: comparar práticas históricas não é equiparar regimes. Israel não é a Alemanha nazi, nem o conflito israelo-palestiniano se reduz a uma repetição mecânica do passado. Mas isso não invalida que certos mecanismos — desumanização, burocratização da violência, deslocação forçada, normalização da morte em massa — reapareçam sempre que o poder deixa de reconhecer limites.
Hannah Arendt mostrou como os maiores crimes da História não exigiram monstros, mas sistemas que tornaram o impensável administrativamente normal. Essa lição não pertence ao passado. É um aviso permanente.
A memória como responsabilidade
Há um desconforto particular — quase trágico — no facto de estas práticas serem hoje associadas a um Estado fundado na sequência do Holocausto. Mas a memória histórica não é um escudo moral automático. O “nunca mais” não funciona como certificado de imunidade ética. Funciona como exigência.
Criticar as políticas do governo israelita, denunciar crimes de guerra e recusar a deslocação forçada de palestinianos não é negar o direito de Israel existir, nem relativizar o Holocausto. Pelo contrário: é levar a sério a lição mais profunda da História europeia — a de que nenhum povo, nenhuma democracia, nenhuma memória está imune à tentação de desumanizar o outro.
Reconhecer antes que seja tarde
O perigo não está nas comparações fáceis, mas na incapacidade de reconhecer padrões enquanto ainda há tempo. Quando a violência extrema se torna linguagem técnica, quando populações inteiras são reduzidas a números ou obstáculos, quando a expulsão é apresentada como solução pragmática, a História deixa de ser memória e passa a ser método.
É nesse momento que o dever crítico se impõe — não para acusar por reflexo, mas para alertar por responsabilidade.
Créditos
Imagem de Mohammed Ibrahim via Unsplash


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