Há momentos em que a política deixa de ser apenas disputa de projectos e passa a ser um regime de vigilância. Não uma vigilância institucional — regulada, proporcional, com critérios — mas uma vigilância difusa, moral, permanente. As recentes eleições presidenciais portuguesas parecem caminhar perigosamente nesse sentido.
O debate em torno das chamadas carteiras de clientes dos candidatos é sintomático. Apresenta-se como defesa do interesse nacional, mas funciona muitas vezes como outra coisa: um atalho emocional, eficaz mediaticamente, pobre democraticamente.
Da transparência ao panóptico
A transparência é um valor democrático essencial. Sem ela, o poder degrada-se. Mas quando a transparência deixa de ser um meio e passa a ser uma condição permanente de inocência, algo se desloca. A política entra numa lógica próxima do panóptico: todos visíveis, o tempo todo, sob a presunção de que a suspeita antecede o facto.
Neste regime, o silêncio deixa de ser um direito. A omissão transforma-se em indício. A defesa torna-se preventiva. Não é preciso prova — basta a possibilidade de culpa.
Como escreveu Maria Castello Branco, a política democrática começa a habituar-se a um espaço público “inundado por uma claridade contínua”, onde a escolha deixa de ser verdadeiramente livre. O problema não é o escrutínio. É a sua substituição por uma vigilância indiferente à distinção entre erro, conflito de interesses ou simples existência profissional.
Comparações falsas, julgamentos fáceis
É neste enquadramento que surgem comparações apressadas, como a que opõe Luís Marques Mendes a Luís Montenegro.
À superfície, ambos “têm empresas”. Mas a semelhança termina aí. Montenegro manteve a sua actividade enquanto exercia funções políticas relevantes. Marques Mendes encerrou a sua antes de formalizar a candidatura presidencial. Num caso houve escrutínio institucional e consequências políticas. No outro, houve denúncia anónima arquivada e julgamento em praça pública.
Tratar estes casos como equivalentes não é rigor analítico — é nivelamento moral, uma técnica clássica do populismo: dissolver diferenças reais para produzir suspeita generalizada.
O populismo de gravata
Este fenómeno não nasce apenas nos extremos mais ruidosos. Manifesta-se também em versões respeitáveis: editoriais insinuantes, debates televisivos que confundem perguntas com acusações, exigências de exposição total como se a vida profissional fosse, por definição, uma falha ética.
É um populismo de gravata. Não grita, não insulta, mas corrói lentamente. Alimenta a ideia de que a política é estruturalmente suja, de que o poder é sempre corrupto, de que ninguém merece confiança. Uma visão simples, emocionalmente eficaz — e profundamente desmobilizadora.
O paradoxo é cruel: exige-se transparência absoluta, mas produz-se uma política mais cautelosa, mais defensiva, mais silenciosa. Uma política onde o risco é punido e a coragem se transforma em ameaça.
O que está realmente em causa
Importa recordar algo essencial: o Presidente da República não governa, não adjudica, não gere contratos. O seu poder é sobretudo institucional, simbólico e moderador. Importar para Belém uma lógica de suspeição própria do Executivo — e mesmo aí discutível — é um erro de categoria.
A democracia suporta o erro. Aprende com ele. O que dificilmente suporta é a suspeita permanente, essa erosão lenta da confiança que transforma a política num exercício contínuo de justificação defensiva.
Quando a suspeita se torna método
Nada disto acontece no vazio. A normalização da suspeita permanente, da denúncia como ponto de partida e da política como espaço estruturalmente contaminado não é apenas um efeito colateral do escrutínio moderno. É também um terreno fértil para o crescimento do discurso anti-político.
Partidos como o CHEGA prosperam precisamente nesta atmosfera: quanto mais indistinta for a fronteira entre falha, conflito de interesses e mera existência pública, mais fácil se torna sustentar a ideia de que “são todos iguais”. O populismo não precisa de provar — precisa apenas de desacreditar.
Há aqui um paradoxo raramente assumido: ao empurrar a política democrática para um regime de vigilância moral permanente, o espaço público não se torna mais exigente — torna-se mais cínico. E o cinismo, ao contrário do que muitas vezes se pensa, não fortalece a cidadania; enfraquece-a, abrindo espaço aos que prometem pureza através da exclusão, da simplificação ou da força.
A defesa da democracia não passa por reduzir a política a um concurso de inocência, mas por reconstruir critérios, distinguir responsabilidades e aceitar que governar — e representar — implica sempre risco, imperfeição e escolha.
Quando tudo é suspeito, nada é verdadeiramente escrutinado.
E quando a política perde essa distinção essencial, perde também a sua razão de existir.


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