Portugal gosta de se pensar como um país de tradição social-democrata. O nome de um dos seus maiores partidos parece confirmá-lo, e o discurso do outro reforça essa ideia. No entanto, uma leitura histórica menos complacente revela outra realidade: Portugal nunca consolidou uma social-democracia reformista e estrutural à maneira do Norte da Europa. Teve, isso sim, partidos amplos que ocuparam fragmentos desse espaço — e que, ao longo do tempo, se desviaram em direções opostas, contribuindo para o esvaziamento progressivo do centro político.
Uma social-democracia sem casa
Ao contrário do que aconteceu nos países nórdicos ou na Alemanha do pós-guerra, a social-democracia portuguesa nunca assentou num compromisso social estável entre capital, trabalho e Estado. A industrialização tardia, a debilidade de um sindicalismo reformista e a herança ideológica do pós-25 de Abril produziram um modelo em que o Estado social foi mais compensatório do que preventivo, e mais redistributivo do que estruturante.
Neste contexto, a social-democracia existiu mais como linguagem política do que como arquitetura institucional. O sistema partidário estabilizou-se não através da consolidação de um modelo social-democrata, mas através de partidos amplos capazes de integrar sensibilidades diversas.
Duas faces imperfeitas
O Partido Social Democrata foi, desde cedo, um partido de espectro alargado. Funcionou como casa da direita democrática, integrando liberais económicos, conservadores institucionais e eleitores de centro. Mais do que um partido ideológico, foi um partido de governação, orientado para a estabilidade e a democracia liberal.
O Partido Socialista, por seu lado, desempenhou um papel decisivo de contenção à esquerda. Absorveu sensibilidades de matriz marxista num período de grande instabilidade política e ideológica, normalizando-as dentro do sistema democrático. À medida que o partido se institucionalizou, parte dessas correntes acabaria por se afastar, mas o PS nunca rompeu totalmente com a ambiguidade entre social-democracia e socialismo democrático.
O momento Sá Carneiro
Paradoxalmente, o momento em que Portugal esteve mais próximo de uma social-democracia europeia real ocorreu no PSD, sob a liderança de Francisco Sá Carneiro. A rutura clara com o marxismo, a defesa intransigente da democracia liberal e a aceitação simultânea do Estado social e da economia de mercado aproximaram-no mais da tradição social-democrata alemã ou escandinava do que o PS da época.
Sá Carneiro compreendeu que sem democracia liberal não há justiça social sustentável, e que sem economia de mercado não há Estado social duradouro. A sua morte interrompeu um projeto que nunca chegou a institucionalizar-se. O que se seguiu foi gestão do sistema, não construção de um novo compromisso social.
O esvaziamento progressivo do centro
O centro político português não colapsou de forma abrupta; foi-se esvaziando progressivamente, empurrado em direções opostas por ciclos governativos distintos.
Com Pedro Passos Coelho, o PSD assumiu um liberalismo de crise. A austeridade e a disciplina orçamental foram apresentadas como imperativos estruturais. Houve coerência, mas também estreitamento: para muitos eleitores de centro, o compromisso social desapareceu, substituído por uma lógica de ajustamento permanente.
Com António Costa, o PS fez o movimento inverso. Apostou na redistribuição e na estabilidade política, governando com apoio da esquerda radical. Mas fê-lo sem reforma estrutural do Estado nem da economia. O centro tornou-se aritmético, não programático: estabilidade sem transformação.
Em ambos os casos, o centro deixou de ser um lugar de síntese e passou a ser um ponto de deslocação. Surgiram eleitorados órfãos e uma crescente dificuldade em oferecer um projeto que conjugasse crescimento, coesão e liberdade.
Uma nota necessária: a comparação nórdica
Como já escrevi a propósito da diferença entre a Suécia e Portugal, a social-democracia não falhou entre nós por excesso de ambição, mas por falta de base estrutural. Enquanto nos países nórdicos se construiu um compromisso duradouro entre sindicatos reformistas, empregadores e Estado — sustentado por elevados níveis de confiança institucional e por uma economia produtiva —, em Portugal esse compromisso nunca se estabilizou.
É esse vazio histórico, mais profundo do que as opções de qualquer governo em particular, que ajuda a explicar o esvaziamento do centro político. E é também nesse contexto que devem ser lidas as propostas atuais de flexibilização laboral: não como ponto de partida para uma social-democracia moderna, mas como tentativa de correção tardia de um modelo económico que nunca foi verdadeiramente reformado.
O presente: liberalização sem reforma
A proposta de reforma da lei do trabalho surge num contexto de economia de baixos salários, fraca produtividade e elevado peso de setores intensivos em mão-de-obra pouco qualificada. Tornar o mercado de trabalho mais flexível pode ser uma discussão legítima. O problema é fazê-lo sem reformar previamente a economia que o sustenta.
Nos países nórdicos, a flexibilidade existe porque há flexicurity: proteção no desemprego, formação contínua, negociação coletiva forte e salários médios elevados. Em Portugal, corre-se o risco de fazer o inverso — flexibilizar primeiro e reformar depois — aprofundando assimetrias e transferindo riscos para quem já os suporta.
Conclusão: liberalização ou compromisso?
Portugal caminhará, por necessidade, para uma maior liberalização económica. A questão é se essa liberalização será acompanhada por um novo compromisso social ou se aprofundará as fragilidades existentes.
Há espaço para uma social-democracia moderna em Portugal, mas não para a versão assistencial e compensatória que marcou grande parte da nossa história recente. Sem reforma económica, sem Estado eficiente e sem salários dignos, a flexibilidade laboral não cria dinamismo — cria discrepâncias.
Sem um projeto de síntese que recupere o melhor da social-democracia europeia, o centro político continuará a esvaziar-se. E quando o centro desaparece, o que sobra raramente é estabilidade.


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