Quando os jornais formavam leitores

Do Expresso ao Independente, passando pela ABOLA e Diário de Noticias

Houve um tempo em que os jornais não eram apenas veículos de informação. Eram instituições culturais. Para quem cresceu antes da internet — e nasceu, por exemplo, no início da década de 1970 — ler um jornal era um gesto formativo: aprendia‑se o país, aprendia‑se a pensar e, não menos importante, aprendia‑se a escrever.

O jornal como escola invisível

Num ecossistema mediático sem notificações, feeds ou timelines, o jornal era mediador do mundo. A autoridade vinha da escrita, do critério editorial e do tempo — tempo para apurar, para editar, para escolher palavras. Jornais como o Diário de Notícias e A BOLA funcionavam como verdadeiros embaixadores da língua portuguesa, chegando por vezes a superar muitos generalistas no cuidado estilístico e na clareza sintáctica.

Ler um jornal era, também, um exercício de cidadania linguística. A língua não era utilitária; era um património partilhado.

O Expresso: referência e centralidade

Nesse contexto, o Expresso ocupava um lugar singular. Era o semanário que estruturava a semana política, o jornal que todos liam — ou diziam ler. A sua autoridade era silenciosa e transversal, atravessando partidos, elites e leitores comuns. Não precisava de afirmar a sua importância: ela era reconhecida.

Ainda hoje o Expresso mantém peso, pluralismo e qualidade jornalística. Mas perdeu algo essencial: a centralidade incontestada que teve até aos anos 90. Não tanto por falhas próprias, mas porque o mundo mediático fragmentou‑se e porque perdeu o seu principal antagonista.

O Independente: irreverência como contrapoder

O Independente não era apenas um concorrente do Expresso. Era um contrapoder cultural. Introduziu irreverência, ironia e desconstrução num espaço dominado por solenidade institucional. Errava — por vezes errava muito — mas obrigava todos os outros a não se acomodarem.

Para um leitor jovem, politizado e curioso, O Independente era oxigénio. Dava prazer, surpresa e desconforto. Onde o Expresso oferecia estrutura e contexto, O Independente oferecia fricção.

Essa tensão elevava o debate público.

O que se perdeu com o desaparecimento do antagonista

Com o fim de O Independente, perdeu‑se mais do que um jornal. Perdeu‑se uma dialética. O Expresso ficou sem espelho crítico à mesma escala; o espaço público ficou mais previsível. Tentativas posteriores nunca conseguiram ocupar plenamente esse lugar — faltou risco, voz própria e independência real.

Hoje há mais opinião, mais ruído e mais velocidade. Mas há menos tensão criativa, menos escrita durável e menos ambição cultural.

Uma perda que não é nostalgia

Sentir esta perda não é saudosismo. É reconhecer que os jornais deixaram de cumprir uma função formativa essencial. Informam mais depressa, mas formam menos. Reagem mais, mas explicam menos. E tratam o leitor, muitas vezes, como consumidor de atenção, não como cidadão adulto.

O Público ocupou parte do espaço deixado vago pelo Diário de Notícias — com enorme mérito — mas sem o peso histórico e simbólico que nunca poderia herdar. O problema não é a falta de qualidade; é a ausência de centralidade cultural.

O jornalismo desportivo e a perda com a passagem a diário

Há ainda uma dimensão que ajuda a compreender esta perda de densidade cultural: a transformação do jornalismo desportivo em produto diário. Durante décadas, jornais como A BOLA não eram apenas veículos de resultados e notícias — eram espaços de escrita cuidada, reflexão e até aprendizagem da língua portuguesa.

Enquanto semanários (ou com uma cadência menos frenética), esses jornais beneficiavam de algo hoje raro: tempo. Tempo para apurar, para escrever melhor, para editar com rigor. O futebol não precisava de gerar “novidade” todos os dias; precisava apenas de ser bem contado.

A passagem a diário alterou profundamente esse equilíbrio. A necessidade de preencher páginas quotidianas empurrou o jornalismo desportivo para:

  • o rumor permanente,
  • a sobreinterpretação de micro-acontecimentos,
  • a transformação da especulação em manchete.

Nesse contexto, perdeu-se parte do cuidado linguístico, da ambição cultural e da distância crítica. A BOLA deixou de ser apenas um jornal sobre futebol que escrevia bem — e passou a competir num ecossistema dominado pela velocidade, pelo impacto e pela emoção imediata, terreno onde outros títulos sempre estiveram mais confortáveis.

O resultado foi um empobrecimento não apenas informativo, mas também linguístico e cultural. O futebol continuou central na sociedade portuguesa, mas deixou, em grande medida, de ser um espaço onde se aprendia a ler e a escrever melhor.

Conclusão

O que se perdeu não foi apenas um modelo de negócio ou um hábito de leitura. Perdeu‑se a ideia de que o jornal podia ser uma escola invisível — de pensamento, de linguagem e de cidadania.

Talvez por isso, hoje, essa ambição reapareça noutros lugares: ensaios, newsletters, blogues. Espaços mais lentos, mais exigentes, mais conscientes de que escrever bem continua a importar.

Porque, em última análise, informar é necessário. Mas formar continua a ser indispensável.

Posted in

Deixe um comentário