A morte lenta do mural: como o Facebook perdeu a sua alma

Quando nos lembramos dos primeiros tempos do Facebook, parece-nos quase uma outra era: o mural (news feed) fervilhava com ideias, links auto-gerados, reflexões pessoais, debates entre amigos sobre livros, filmes, política, artes — uma ágora digital. Eu próprio incentivei várias pessoas a entrar, criámos comunidades, alimentámos a partilha.
Hoje, olhando para ele, tenho a impressão de que aquele espaço perdeu a alma. Está lá, claro — os perfis, os grupos, os “likes” continuam — mas o pulsar original abrandou. As pessoas dispersaram-se; novas redes mais ágeis, mais espontâneas, chamaram a atenção; e o Facebook ficou — diria — mais estático, mais corporativo, mais dirigido ao consumo do que à conversa.

O auge: o Facebook como ágora digital

No seu livro The Facebook Effect (2010), David Kirkpatrick relata como o Facebook evoluiu de um projecto de dormitório em Harvard para uma empresa com 500 milhões de utilizadores.
Naquele período — entre 2007 e 2012 — a rede social permitia concretamente coisas raras: contacto informal, extensão de amizades reais, descoberta de conteúdos partilhados com alguma assinatura pessoal. Para muitos, era a primeira experiência em que um amigo partilhava um artigo completo, uma opinião política, um pensamento de madrugada — e isso gerava reacções reais, comentário verdadeiro.

A transição: crescimento, massificação, algoritmo e publicidade

Mas à medida que o Facebook crescia, as dinâmicas mudaram. A rede deixou de ser apenas “entre amigos” para se tornar “de todos”, e com isso vieram mudanças estruturais:

  • O algoritmo que decide o que aparece no feed, menos escolha pessoal e mais curadoria algorítmica;
  • A publicidade intensificada, as marcas, as páginas com milhares de seguidores que competem por atenção;
  • A massificação dos perfis, o que dilui o carácter íntimo e espontâneo.

Em The Culture of Connectivity (2013), José van Dijck explica como plataformas como o Facebook incorporam a lógica do “compartilhar” como imperativo de design — “What you share is what you get.” Assim, o Facebook passou a incentivar a produção de conteúdo como acto de consumo, e a visibilidade deixou de ser natural: tornou-se dependente de regras e métricas.

Da efervescência ao esvaziamento — a transição do debate online

Durante a década de 2010, o Facebook foi perdendo o monopólio da conversa digital. À medida que o seu algoritmo se tornava mais fechado e orientado para a rentabilidade, a espontaneidade migrou para o Twitter, que se afirmava como a nova ágora da atualidade.

O Twitter — ainda antes de se tornar X — consolidou-se como a rede social de referência para jornalistas, académicos, escritores e figuras públicas. Era o lugar onde as notícias nasciam, as opiniões se testavam e o debate público fervilhava em tempo real. A sua estrutura aberta, baseada em texto breve e ligação direta entre utilizadores, recriava algo do espírito original da internet: rápido, caótico, vivo.

Enquanto o Facebook se transformava num mural estático e filtrado por algoritmos, o Twitter mantinha uma sensação de imprevisibilidade democrática: qualquer pessoa podia ser ouvida. Essa qualidade fez dele o espaço privilegiado do jornalismo contemporâneo — um misto de redação coletiva e bar virtual de discussões políticas.

Mas com a aquisição por Elon Musk e a transformação em “X”, essa dinâmica começou a desmoronar-se. As mudanças de política, o colapso da moderação e a introdução do modelo pago (Twitter Blue) corroeram a credibilidade da plataforma e fragmentaram a comunidade. O que antes era o epicentro do debate tornou-se um território errático, sem identidade.

O vazio deixado por essa mutação ajudou a impulsionar redes descentralizadas como o Mastodon e o Bluesky — espaços menores, mais comunitários e menos orientados para o lucro. É nelas que muitos antigos utilizadores do Facebook e do Twitter tentam hoje reconstruir o espírito de diálogo e partilha que se perdeu.

Causas profundas da “crise” do Facebook

  • Monetização e lógica empresarial: a rede passou a focar-se menos em ser “comunitária” e mais em ser “negócio”, audiência, dados, publicidade;
  • Algoritmo e visibilidade reduzida: o mural deixou de ser cronológico e passou a ser curado por máquinas que privilegiam engajamento e lucro;
  • Mudança demográfica: os utilizadores fundadores envelheceram e os novos preferiram plataformas mais leves ou visuais;
  • Fadiga de conteúdo: os posts tornaram-se repetitivos e comerciais;
  • Desconfiança e escândalos: casos de privacidade e manipulação de dados abalaram a credibilidade.

Como argumenta Siva Vaidhyanathan em Antisocial Media (2018/2022), o Facebook transformou-se num actor que mina a confiança social e favorece a polarização política. O resultado: em vez de “uma comunidade viva”, temos um feed que parece um repositório de anúncios e memes reciclados.

Consequências para o debate público e para as comunidades locais

O declínio do Facebook como “praça pública” tem implicações importantes:

  • Os meios de comunicação deixaram de depender tanto do Facebook como canal orgânico de distribuição;
  • As comunidades locais perderam parte do dinamismo dos grupos e eventos;
  • A cultura digital migrou para espaços mais lentos e deliberados, como blogs, newsletters e fóruns.

Perspectiva pessoal e cultural

Enquanto utilizador que acompanhou o boom do Facebook desde os seus momentos mais vibrantes, sinto-me hoje mais confortável em plataformas descentralizadas — como o Mastodon — onde o ritmo é mais humano e o diálogo mais autêntico. A Internet tornou-se mais segmentada: cada rede serve um propósito diferente, e o Facebook já não é o centro dessa experiência.

Conclusão: o que fica, e para onde vamos

O Facebook não morreu, mas mudou. Continua útil para famílias, grupos e memórias, mas a sua função é outra. A “alma” do mural — o debate espontâneo — diluiu-se na lógica da monetização e da atenção.
Para quem cria e lê com atenção, a lição é clara: a presença digital consciente importa. Manter um blogue próprio é talvez a forma mais autêntica de preservar o espírito das primeiras redes: partilhar ideias, e não apenas conteúdos.

Referências

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