A expressão “os comunistas comem crianças” tornou-se um dos slogans mais caricatos da propaganda anticomunista do século XX. Foi usada para ridicularizar e demonizar o inimigo ideológico, reduzindo-o à imagem grotesca do bárbaro que devora inocentes. Mas como acontece frequentemente com os mitos políticos, a caricatura assenta em memórias históricas reais — e uma das mais brutais é o Holodomor, a fome artificialmente provocada pelo regime de Stáline na Ucrânia entre 1932 e 1933.
O Holodomor: quando a fome é uma arma
A coletivização forçada da agricultura, ordenada por Moscovo, implicou a requisição das colheitas, a perseguição de agricultores considerados “kulaks” e a proibição de conservar grão para subsistência. Postos de controlo militares impediam os camponeses famintos de abandonar as aldeias em busca de comida. O resultado foi uma tragédia de proporções inimagináveis: milhões de mortos em menos de dois anos.
Nos testemunhos de sobreviventes, recolhidos décadas mais tarde, a fome surge descrita como um abismo de sofrimento: crianças a definhar nos braços das mães, famílias inteiras a morrer em poucos dias, cadáveres abandonados nas ruas. Quando já não havia raízes, cascas de árvores ou animais, o desespero ultrapassou todos os limites. Alguns recordam vizinhos enlouquecidos pela fome que se voltaram contra os próprios filhos. Outros falam do medo de deixar crianças sozinhas, porque circulavam histórias de raptos para canibalização.
Estes episódios, contados sempre em tom de horror e tabu, mostram como a fome deliberadamente provocada destruiu não apenas vidas, mas também laços morais e sociais. É nesse ponto que o mito e a realidade se cruzam: a caricatura de que “os comunistas comem crianças” ganhou ressonância histórica no Holodomor.

Genocídio pela fome
O Holodomor não foi uma catástrofe natural. Foi planeado e executado pelo Estado soviético para esmagar a resistência camponesa e enfraquecer a identidade nacional ucraniana. Diversos parlamentos — incluindo o da Ucrânia, Canadá, Estados Unidos e vários países europeus — reconhecem-no hoje como genocídio.
Como escreveu o historiador Robert Conquest em The Harvest of Sorrow, “a fome foi usada não como consequência acidental de políticas falhadas, mas como instrumento de poder”. Anne Applebaum, em Red Famine, reforça: “Stáline sabia que as pessoas estavam a morrer, e escolheu não aliviar o sofrimento”.
Crimes do comunismo soviético
O Holodomor é apenas uma das páginas negras do comunismo soviético. Entre os anos 30 e 50, o regime de Stáline promoveu:
- Os Grandes Expurgos, que vitimaram centenas de milhares de opositores reais ou imaginados;
- O sistema Gulag, uma rede de campos de trabalhos forçados onde milhões pereceram em condições desumanas;
- Deportações em massa de povos inteiros — como tártaros da Crimeia, chechenos e inguches — condenados a marchas intermináveis e fome;
- A repressão cultural e religiosa, silenciando línguas, igrejas e tradições locais, impondo a homogeneização soviética pela força.
O total de mortos atribuídos ao comunismo soviético ascende a dezenas de milhões, colocando-o lado a lado com o nazismo como um dos maiores perpetradores de crimes contra a humanidade no século XX.
Comunismo e nazismo: faces do totalitarismo
Apesar das diferenças ideológicas, comunismo e nazismo partilharam métodos:
- O uso sistemático do terror de Estado;
- O extermínio e deportação de povos inteiros;
- A destruição das liberdades individuais;
- O culto da personalidade dos líderes.
Enquanto o nazismo foi condenado em Nuremberga e se tornou símbolo universal do mal, os crimes do comunismo continuam muitas vezes relativizados ou esquecidos. Esta “memória desigual” dificulta a compreensão plena do totalitarismo.
O eco português: o PCP entre fidelidade e adaptação
Em Portugal, o Partido Comunista foi durante décadas o aliado mais fiel da União Soviética. Sob a liderança de Álvaro Cunhal, o PCP não só se inspirava no modelo soviético como o defendia abertamente, mesmo perante as evidências de repressão. A invasão da Hungria em 1956 e da Checoslováquia em 1968 foram justificadas em nome da “defesa do socialismo”. O Holodomor, os expurgos e o sistema Gulag nunca mereceram condenação: eram reduzidos a “propaganda ocidental” ou a meros “erros” de percurso.
Com a queda do Muro de Berlim e o colapso da URSS, muitos partidos comunistas europeus procuraram reinventar-se: italianos e espanhóis aproximaram-se da social-democracia, franceses seguiram caminhos híbridos. O PCP, porém, recusou rever-se. Continuou a reivindicar o legado soviético, apresentando-o como um projeto globalmente positivo, apesar dos crimes.
Mas se a fidelidade ideológica se manteve, a prática política mudou. O PCP tornou-se um ator institucional da democracia portuguesa: participa regularmente em eleições, administra câmaras municipais, lidera a central sindical CGTP e já foi pilar de soluções de governo, como na geringonça (2015-2019). A retórica revolucionária persiste, mas na prática o PCP age como um partido integrado na democracia, ainda que minoritário e resistente a compromissos europeístas.
Este duplo movimento — fidelidade às origens e adaptação à realidade democrática — ajuda a explicar a singularidade do PCP: herdeiro de uma tradição marcada pela cumplicidade com crimes do comunismo soviético, mas também sobrevivente político, capaz de se reinventar sem nunca romper com a sua identidade histórica.
Conclusão: memória contra o esquecimento
O mito de que “os comunistas comem crianças” pode soar grotesco ou absurdo, mas o Holodomor mostrou que a realidade pode ultrapassar qualquer caricatura. A fome deliberada levou ao colapso não apenas do corpo, mas da própria humanidade.
Recordar o Holodomor, o Gulag e os expurgos é tão necessário quanto preservar a memória do Holocausto. São duas faces da mesma moeda: diferentes ideologias, mas a mesma lógica de desumanização.
A tarefa da memória não é relativizar um horror em nome do outro, mas reconhecer que ambos representaram projetos totalitários que transformaram milhões de vidas em cinzas. Só enfrentando estas sombras sem indulgência se pode defender a liberdade e evitar que os fantasmas do século XX regressem disfarçados no século XXI.
📖 Referências
Livros e estudos fundamentais
- Robert Conquest — The Harvest of Sorrow: Soviet Collectivization and the Terror-Famine (Oxford University Press, 1986).
- Anne Applebaum — Fome Vermelha (Em Portugal via Bertrand)
- Timothy Snyder — Bloodlands: Europe Between Hitler and Stalin (Basic Books, 2010).
- Stéphane Courtois (ed.) — The Black Book of Communism: Crimes, Terror, Repression (Harvard University Press, 1999).
- Alexander Solzhenitsyn — O Arquipélago Gulag (Dom Quixote, várias edições).


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