O regresso de Donald Trump à Casa Branca não está apenas a reabrir feridas políticas nos Estados Unidos — está a testar, de forma inédita, os limites da própria democracia americana.
Em poucas semanas, o novo executivo abriu três frentes de ação que, vistas em conjunto, desenham o contorno de algo mais profundo do que um governo autoritário: um projeto de poder totalizante, que procura controlar o exército, a justiça e a informação.
🪖 1. O exército nas cidades democratas
Na primeira semana de outubro, Trump convocou centenas de generais e almirantes para uma reunião em Washington. O que poderia ser um encontro de rotina militar tornou-se um momento político de enorme gravidade.
“Devemos usar algumas destas cidades perigosas como campos de treino para o nosso exército.”
Donald Trump, segundo o New York Times
A frase ecoou como uma ameaça interna. As cidades deixaram de ser território nacional para se tornarem, na retórica presidencial, zonas de guerra. A ideia de empregar forças armadas em solo americano, sem motins nem colapso da ordem pública, rompe com um dos pilares da democracia constitucional: a separação entre poder civil e militar.
É uma linguagem de combate que transforma cidadãos em inimigos, e o “outro” político em alvo legítimo.
⚖️ 2. A captura da justiça
Um artigo detalhado do New York Times revelou que Trump substituiu dezenas de procuradores de carreira por aliados políticos — incluindo antigos advogados pessoais — e ordenou investigações contra antigos adversários: James Comey, Letitia James, Adam Schiff, John Bolton, John Brennan e Fani Willis.
O padrão é claro: usar a lei como instrumento de vingança. A independência judicial, construída ao longo de décadas, foi substituída por uma lógica de lealdade pessoal. A justiça americana, que tantas vezes serviu de travão ao poder presidencial, está agora a ser reconfigurada para o legitimar.
Trata-se de uma mutação estrutural: de Estado de direito para Estado de obediência.
📺 3. Silêncio e purga nos media
Em maio, o governo ordenou a demissão de centenas de trabalhadores da Voice of America, um canal estatal criado precisamente para garantir jornalismo independente. Ao mesmo tempo, Trump voltou a ameaçar revogar licenças da ABC e NBC, acusando-as de “falsas notícias” e “desinformação”.
A mensagem é inequívoca: quem não repete a narrativa oficial é dispensável. A fronteira entre comunicação pública e propaganda dissolve-se. O objetivo não é apenas controlar a imprensa — é reduzir o espaço público à voz do poder.
🔗 4. A construção do poder total
Estes três eixos — força militar, justiça e comunicação — formam os alicerces clássicos do totalitarismo. A filósofa Hannah Arendt descreveu este processo como uma “fusão da violência, da lei e da propaganda”, onde o poder já não se limita a governar, mas procura moldar a própria realidade.
Trump ainda não aboliu eleições nem dissolveu o Congresso, mas está a subverter as instituições por dentro, transformando-as em extensões do Executivo. O que se vê é um autoritarismo competitivo em mutação: a fachada democrática mantém-se, mas a substância — a liberdade, o pluralismo e a separação de poderes — começa a ruir.
⚠️ 5. A tentação
A tentação totalitária não surge de um golpe, mas de uma acumulação de abusos, normalizados um a um. Hoje são cidades democratas e jornalistas. Amanhã, serão juízes, sindicatos, professores, escritores. Quando o poder se convence de que o Estado é o seu espelho, o passo seguinte é tentar apagar tudo o que não reflita a sua imagem.
O perigo, mais do que americano, é universal: a democracia morre não com um estrondo, mas com uma série de aplausos resignados.
🧭 Epílogo — Pode Trump transformar os EUA num regime totalitário?
Provavelmente não de forma plena — mas pode corroer a democracia americana até a tornar irreconhecível.
Os Estados Unidos ainda têm traves mestras: tribunais independentes, imprensa livre, estados federados com autonomia e uma sociedade civil ativa. Estas estruturas dificultam a imposição de um regime total.
Mas o perigo não está num golpe repentino; está na autocratização lenta, legalista e meticulosa. Trump não precisa de fechar o Congresso — basta neutralizá-lo. Não precisa de censurar toda a imprensa — basta amedrontá-la. Não precisa de abolir a Constituição — basta reescrevê-la na prática, moldando-a à sua vontade.
Se conseguir controlar simultaneamente a justiça, a comunicação e as forças de segurança, os EUA podem entrar numa fase de autoritarismo funcional, onde o ritual democrático sobrevive, mas o seu espírito desaparece.
A questão já não é se Trump quer o poder total — é se a América ainda tem força institucional e moral para o impedir.
📚 Referências
- Trump Enemies: Justice Department Investigations, The New York Times (interativo, 7 out. 2025). Link
- American Soldiers in American Cities, The New York Times (2 out. 2025). Link
- Trump Fires Black Officials From an Overwhelmingly White Administration, The New York Times (8 out. 2025). Link
- Posse Comitatus Act and the Insurrection Act (Explainer), Brennan Center for Justice (recurso de enquadramento legal). Link


Deixe um comentário