O escritor e professor Artur Coelho relatou, no Mastodon, a angústia de ver a sua mulher ser transportada das urgências das Caldas da Rainha para o Hospital de Santa Maria, onde foi submetida a uma neurocirurgia de emergência após uma hemorragia cerebral.
Por pouco não me desmanchei a chorar quando o enfermeiro dos cuidados intensivos me pousou a mão no ombro. “Pode segurar-lhe a mão; apesar de sedada, ela sente a sua presença”, disse-me. Aguentei-me, não por qualquer preconceito de que os homens não choram, mas porque estes não são dias de carpir. São dias de manter os nervos no lugar, custe o que custar, para bem de todos os que me rodeiam.
Na véspera tinha sido surpreendido com a notícia: a minha mulher estava nas urgências das Caldas da Rainha, incapaz de se mover e falar. Após análises, o diagnóstico preliminar foi arrasador: hemorragia cerebral, com indicação para transporte urgente para Santa Maria. Chegou ao hospital ao final da tarde, para ser submetida a uma neurocirurgia de emergência já de madrugada. A longa espera deveu-se ao quadro de patologia pré-existente, sempre delicado. Esteve consciente e lúcida até à operação. Quando a revi, já estava sedada num necessário coma induzido, mas com resultados operatórios e prognóstico muito positivos.
Ainda não é tempo de cantar vitória, mas se a equipa médica transmite que o pior foi evitado, isso é o que precisamos de ouvir. Partilho isto não pelo caso em si — doloroso e pessoal — mas pelo contexto que me permite relatar uma experiência duríssima com o SNS, mostrando o quanto este sistema é essencial e o tremendo trabalho dos seus profissionais.
Foram sempre inexcedíveis, calmos, compreensivos. Recordo a médica que enfrentou o desagrado do segurança das urgências ao levar-me, a mim e a outros familiares, à sala de estabilização onde a minha mulher aguardava transporte para Lisboa: “Vão dar-lhe um beijinho e fiquem com ela até a virem buscar”, disse-nos. Ou a enfermeira do HSM que saiu comigo, à chuva, para localizar a mãe e a irmã da minha mulher: “Vamos colocá-la em SO, para aguardar subida ao bloco, e fiquem todos com ela até decidirem que pode entrar.” Ou ainda o enfermeiro da unidade de neurocríticos que me colocou a mão no ombro, quase levando a que as emoções que controlo saíssem em enxurrada.
São pessoas competentes, de um humanismo paciente no trato com todos. Fazem pequenos “fechar de olhos” a regras — que têm razão de ser — porque sabem o quanto a presença e a proximidade são importantes para doentes e familiares. E, apesar de urgências entupidas, garantem a resolução rápida de problemas graves e potencialmente fatais.
Nestes dias em que o SNS está a ser ativamente desmantelado por sucessivos governos — cujos pomposos anúncios de melhoria e racionalidade se traduzem em menos meios para todos, enquanto nos vendem o canto podre de sereia da excelência privada —, torna-se ainda mais evidente a forma como os seus profissionais lidam com o impossível, com cortesia e profissionalismo. O SNS é, acima de tudo, um espaço onde todos têm direito a tratamento e cuidados.
É isto que queria exprimir: a utopia neoliberal de um país sem SNS contrasta violentamente com o esforço tremendo de um sistema depauperado que, apesar de tudo, tenta dar a melhor resposta.
Amanhã espero encontrar a minha mulher acordada, ainda numa zona de cuidados intensivos, pois as questões crónicas dela requerem sempre cuidados extra. Talvez ainda não, mas com a certeza de estar estável e bem encaminhada.
Na memória, perdura o humanismo puro daquele enfermeiro que me colocou a mão no ombro — gesto simbólico e sintomático da atitude de todos os profissionais com quem me cruzei.
Este testemunho, profundamente humano, é também uma prova do que está em causa quando falamos do Serviço Nacional de Saúde. Enquanto os governos anunciam modernizações e racionalizações que se traduzem em cortes, cativações e falta de meios, o SNS sobrevive porque os seus profissionais insistem em fazer o impossível com os recursos que têm.
O contraste entre humanismo e desinvestimento
O episódio mostra o contraste entre o esforço sobre-humano dos profissionais e o desinvestimento político que corrói o SNS há anos:
- Em 2024, o SNS registou um défice de 1 377,6 milhões de euros, mais do dobro de 2023.
- Nesse mesmo ano, recebeu menos 913,4 milhões de euros do que estava inscrito no Orçamento do Estado.
- O sistema gasta cada vez mais em “remendos”: 465 milhões de euros em horas extraordinárias só em 2024 (mais de 17 milhões de horas), a somar a 230 milhões de euros em médicos prestadores externos.
- Enquanto isso, os portugueses pagam cada vez mais do próprio bolso: cerca de 30 % da despesa total em saúde vem de pagamentos diretos das famílias, o dobro da média da OCDE (15 %).

O que está em risco
A história relatada por Artur Coelho é, acima de tudo, um lembrete: o SNS não é apenas uma máquina de gestão de recursos, é uma conquista civilizacional. É o espaço onde qualquer pessoa, independentemente da sua carteira, tem direito a cuidados de saúde. É um dos pilares da democracia portuguesa.
Desinvestir no SNS não é apenas uma questão orçamental: é condenar a perder aquele gesto do enfermeiro que pousa a mão no ombro do familiar em desespero. É empurrar os cidadãos para um sistema onde o cuidado deixa de ser um direito universal para se tornar um privilégio pago.


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