Portugal: entre a social-democracia perdida e o liberalismo contido

Um dos maiores mitos repetidos pela direita portuguesa é o de que “há Estado a mais” em Portugal. A frase ecoa nas campanhas eleitorais e nos debates televisivos, servindo de justificação para cortes, privatizações e promessas de “modernização”. Mas, ao olhar para os números e para a realidade dos serviços públicos, a narrativa cai por terra.

A verdade, como lembra Ricardo Paes Mamede num recente artigo no Público, é que a despesa pública em Portugal está entre as mais baixas da União Europeia — tanto em percentagem do PIB como em despesa por habitante ajustada ao custo de vida. Não só não temos “Estado a mais”: temos cada vez menos Estado, cada vez menos social-democracia.


Portugal na cauda da despesa pública

Entre 2013 e 2024, a despesa pública portuguesa caiu de cerca de 50% para 42,8% do PIB. No mesmo período, a média da União Europeia pouco se alterou (50% → 49,2%). Hoje, Portugal é o 6.º país da UE com menor despesa do Estado em proporção da riqueza nacional.

Em paridade de poder de compra, há apenas seis países onde o Estado gasta menos por habitante do que em Portugal: Bulgária, Letónia, Grécia, Roménia, Estónia e Lituânia — quase todos com rendimentos médios mais baixos. Ou seja: Portugal financia os seus cidadãos como os países mais pobres da União, apesar de estar acima deles em riqueza relativa.


O custo da disciplina orçamental

Este recuo do papel do Estado tem uma explicação: a redução acelerada do rácio da dívida pública, de mais de 130% do PIB em 2013 para menos de 95% em 2024. Um feito orçamental notável — mas alcançado à custa de investimento público historicamente baixo, congelamento de salários e progressões na função pública, e degradação dos serviços coletivos.

O preço está à vista: filas intermináveis no SNS, escolas sobrelotadas, ausência de políticas sérias de habitação, serviços administrativos sem resposta.


O mito da eficiência e a ilusão liberal

Sempre que surgem críticas ao Estado social, a resposta é a mesma: “o problema é a ineficiência”. Claro que há margem para melhorias — digitalização, melhor gestão de recursos humanos, combate ao desperdício. Mas acreditar que é possível aumentar a eficiência e, ao mesmo tempo, reduzir ainda mais a despesa pública é uma ilusão.

O exemplo português mostra o contrário: mais cortes, mais privatizações e mais pressão sobre trabalhadores públicos têm resultado em menos capacidade de resposta e maior desigualdade no acesso a serviços básicos.


A transição em curso

Portugal não é (ainda) uma sociedade liberal ao estilo americano, onde o Estado se demite quase por completo da saúde ou da educação. Mas está claramente numa fase de transição:

  • Do lado social-democrata, mantém pilares universais como o SNS e a escola pública.
  • Do lado liberal, assiste-se a uma transferência gradual de responsabilidades para o setor privado, acompanhado de uma retórica de “menos Estado, mais liberdade económica”.

O resultado é um hibridismo instável: um Estado mínimo para os mais pobres, e um mercado privado para quem pode pagar.


Conclusão

A insistência em reduzir a despesa pública como percentagem do PIB está a transformar Portugal num país cada vez menos social-democrata, cada vez mais liberalizado.

A pergunta, afinal, não é se temos “Estado a mais”.
A pergunta é: até quando queremos viver num país onde o Estado social se aproxima mais dos padrões dos países mais pobres da Europa do que dos países mais ricos?

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