As palavras que salvam: como a leitura muda o mundo

Há livros que não se leem — acontecem-nos. Entram-nos pela pele, atravessam as fissuras do quotidiano e fixam morada num canto da memória. Não mudam o mundo com estrondo, mas com persistência. E, às vezes, é o suficiente.

Ler pode salvar. Não no sentido romântico da redenção fácil, mas na possibilidade real de nos resgatar da apatia, da solidão, da ignorância. Há quem tenha sido salvo da morte por uma página lida na cela. Há quem tenha sobrevivido ao exílio, ao luto, à doença, graças às palavras que encontrou — ou que o encontraram — num livro.

“A leitura é, provavelmente, uma outra maneira de estar em lugar nenhum” — José Saramago

A leitura é um acto íntimo, mas não inócuo. Não se trata apenas de decifrar letras, mas de estabelecer ligações com mundos que se abrem no silêncio. Cada leitor carrega dentro de si uma biblioteca invisível, feita de sublinhados mentais, de frases que ficaram a ecoar, de personagens que se tornaram companhia.

Mas ler é também, inevitavelmente, um acto político. Os regimes autoritários sabem-no bem. Censuram, queimam, proíbem livros porque sabem que o pensamento se torna mais difícil de controlar quando nasce alimentado por ideias que desafiam. No Chile de Pinochet, liam-se poemas escondidos em sacos de arroz. Na ditadura portuguesa, os livros proibidos passavam de mão em mão, como contrabando de liberdade.

Também hoje, de forma mais subtil, há quem deseje uma população que não leia — ou que leia apenas o que entretém e não perturba. A literacia crítica é incompatível com o conformismo.

Leitura e metamorfose

Recordo-me de livros que me transformaram — não com grandes lições morais, mas com a lenta infiltração de uma nova sensibilidade. O livro certo no momento certo é como uma conversa que chega quando mais precisamos. E às vezes nem sabemos disso à partida.

Ler Primo Levi, Ildefonso Falcones, Leïla Slimani ou João Tordo não me tornou uma pessoa melhor por si só. Mas deixou-me menos confortável com a ignorância, menos tolerante com o silêncio cúmplice, mais disposto a escutar o outro — e a mim próprio.

Mas salvar… de quê?

Salvar da solidão, da alienação, da superficialidade. Salvar do ruído. A leitura dá-nos um espaço interior que o mundo parece querer extinguir com distrações constantes. Ao ler, recuperamos o tempo. A pausa. A dúvida. E é nesses intervalos que a consciência respira.

Não é um gesto heroico. Mas é, talvez, o mais persistente dos gestos transformadores. Quando não temos voz, lemos a de outros. E assim, pouco a pouco, vamos encontrando a nossa.

O acesso desigual ao livro

Claro, seria ingénuo ignorar que nem todos têm o privilégio de ler. O tempo, os meios, a educação, o acesso — tudo isso ainda determina quem pode (e como pode) ler. Mas resistem as bibliotecas públicas, os clubes de leitura de bairro, os audiolivros, os projectos comunitários que distribuem livros por caixas de correio ou bancas improvisadas.

Ler continua a ser, paradoxalmente, um gesto revolucionário e frágil. Mas é nas mãos de quem lê que o mundo se escreve de novo.

As palavras que ficam

No fim, talvez o mais importante sejam as palavras que nos ficam. Que ecoam quando o ruído pára. Que nos lembram que a dor é partilhável, que a beleza é possível, que o pensamento é uma forma de acção.

Ler é, talvez, a forma mais silenciosa de gritar que ainda acreditamos.

Leituras complementares

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