Cidades para viver ou para vender? A crise da habitação em Portugal expõe contradições profundas entre o direito à casa e a lógica do mercado.
A crise da habitação em Portugal é hoje um dos temas mais quentes do debate público. Com rendas incomportáveis para a maioria, jovens sem possibilidade de sair de casa dos pais, e um mercado onde quem compra não são os residentes mas sim investidores, fundos ou turistas, muitos começam a perguntar: ainda é possível viver nas nossas cidades?
A resposta é complexa, mas o problema é claro: o direito à habitação está hoje subjugado à lógica do mercado e da especulação.
Causas da crise em Portugal
O mito da imigração como causa da crise
Muitos discursos públicos, nomeadamente de cariz populista, têm tentado associar o aumento dos preços da habitação ao crescimento da imigração em Portugal. No entanto, essa relação é profundamente simplista e não resiste à análise.
A população estrangeira residente tem crescido de forma significativa, devendo ultrapassar os 1,6 milhões até ao final deste ano. Se é verdade que alguns imigrantes — como muitos cidadãos britânicos — têm maior poder de compra, também é certo que a maioria ocupa nichos de mercado habitacional abandonados ou degradados, frequentemente em condições indignas e localizados em zonas periféricas.
A verdadeira causa da crise da habitação não está no número de imigrantes, mas na ausência de políticas públicas eficazes, no enorme défice de construção de habitação acessível, na especulação imobiliária, e na falta de regulação eficaz do arrendamento e do alojamento local.
Culpar a imigração pela crise é uma distração conveniente que encobre os verdadeiros interesses económicos e decisões políticas que estão na origem do problema.
Embora muito se fale da imigração como causa do boom habitacional, essa é apenas uma parte mínima do problema. A raiz da crise em Portugal está noutros fatores mais profundos e estruturais:
- Oferta insuficiente: a construção nova não acompanha a procura, especialmente nas cidades mais pressionadas. Os solos urbanos são escassos e mal geridos.
- Especulação imobiliária: muitos imóveis são comprados por investidores ou fundos para arrendamento de curta duração ou simples valorização futura.
- Turismo e alojamento local: Lisboa passou de 13 para 55 milhões de dormidas anuais em menos de duas décadas. Muitas casas deixaram de estar acessíveis às populações locais.
- Políticas públicas insuficientes: Portugal tem um dos parques habitacionais públicos mais reduzidos da Europa. As autarquias venderam terrenos e não os usaram para construir habitação acessível.
- Crédito e fiscalidade: durante anos, o crédito barato e a falta de regulação incentivaram a compra para lucro e não para residência.
A crise que bate recordes: dados de 2025
Segundo dados divulgados pelo INE e noticiados pelo jornal Público, os preços das casas em Portugal subiram mais de 16% nos primeiros cinco meses do ano — o maior aumento desde que há registos.
Este aumento coincide com a entrada em vigor da garantia pública para jovens na compra da primeira casa, uma medida lançada pelo Governo que veio fomentar a procura. Mas este fenómeno não pode ser dissociado das causas estruturais já identificadas: oferta insuficiente, pressão turística, especulação internacional, falhas regulatórias e ausência de habitação pública em escala.
Um problema global, com soluções locais
A crise não é exclusiva de Portugal. Berlim, Barcelona, Paris, Toronto ou Auckland vivem problemas semelhantes. Mas lá fora, muitos países começaram a agir.
Exemplos a seguir:
- Nova Zelândia proibiu a compra de casas por estrangeiros não residentes.
- Canadá impôs um banimento temporário a compras por estrangeiros.
- Austrália proibiu compras de imóveis por investidores internacionais.
- Singapura aplica taxas de até 60% a compradores estrangeiros.
Medidas que Portugal pode adotar
- Limitar investimento estrangeiro especulativo: com impostos adicionais ou restrições à compra em zonas de pressão urbana.
- Controlar o alojamento local: limitar o número de licenças, criar zonas de exclusão, fiscalizar o cumprimento da lei.
- Reabilitar e penalizar casas devolutas: aplicar efetivamente os impostos previstos na lei e reforçar o levantamento de imóveis vazios.
- Investir em habitação pública e cooperativa: aumentar drasticamente o parque de habitação acessível, com novas construções e parcerias público-comunitárias.
- Reformar o urbanismo e o ordenamento do território: com quotas obrigatórias de habitação acessível em cada novo empreendimento.
Conclusão
A crise da habitação é o resultado de décadas de ausência de estratégia, de uma economia centrada no turismo e de uma visão que tratou a casa como mercadoria e não como direito.
Mas há alternativas. O que falta é coragem política, planificação e vontade de colocar o bem comum à frente do lucro.
Portugal tem de decidir: cidades para viver ou para vender?


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