Sobre “A Máquina de Ganhar Eleições”, de António Guerreiro
No Público de 20 de maio, António Guerreiro ofereceu-nos mais do que uma crónica: ofereceu-nos um espelho. Intitula-se A Máquina de Ganhar Eleições, mas o que ali se disse vai muito além das urnas. É uma desmontagem fria — e literária — das explicações automáticas que seguem qualquer catástrofe eleitoral. Sempre a mesma promessa: uma “reflexão profunda”. Mas, como bem nota Guerreiro, ninguém parece disposto a verdadeiramente pensar — apenas a repetir diagnósticos gastos como se fossem novidade.
É aí que o texto muda de plano e convida o leitor a sair da moldura. As explicações tradicionais — populismo, redes sociais, votos de protesto, “wokismo” — soam já a banda sonora de um filme velho. Em vez disso, Guerreiro aponta-nos um outro caminho: o livro La Machine à Faire Gagner les Droites, de Yves Citton, que nos propõe pensar a ascensão da direita não como fenómeno nacional, mas como parte de uma engrenagem transnacional profundamente mediática. A direita, diz Citton, aprendeu a operar dentro de uma “máquina” que molda públicos, não cidadãos.
O conceito é inquietante: já não vivemos em democracia, mas em mediarquia — um regime em que o poder está nos media e nos algoritmos da atenção. Elegemos, não em nome do debate de ideias, mas da visibilidade mediática. Passámos da demos-cracia à publico-cracia. E os políticos, ao aceitarem expor-se nos grandes palcos do entretenimento televisivo, alimentam precisamente a lógica que os irá triturar enquanto representantes.
Guerreiro não escreve com raiva, nem com cinismo. Escreve com uma lucidez quase melancólica — e com o olhar de quem lê mais do que jornais. Com alguma ironia, propõe à esquerda (e a quem quiser pensar para lá do óbvio) que comece por ler. Ler teoria. Ler de fora. Pensar para lá da análise politológica do costume.
Mas também nos deixa num lugar desconfortável: o de quem percebe o problema mas não vê ainda como escapar-lhe. O que será uma contramáquina? Como resistir à lógica da atenção e do espetáculo? O texto não responde. Mas talvez o primeiro passo seja mesmo este: parar de aceitar como naturais as explicações prontas e começar a escavar a maquinaria que nos escolhe os vencedores.
Talvez o que esteja em causa não seja ganhar eleições — mas recuperar a capacidade de as merecer.
A outra engrenagem: os media como palco e parte do problema
Se a crónica de Guerreiro nos convoca a pensar para lá das análises eleitorais apressadas, há um elemento que merece destaque próprio: a crítica implícita — mas corrosiva — aos meios de comunicação social. Não se trata apenas de um desvio de foco; trata-se de expor o mecanismo onde tudo se joga.
Guerreiro, com apoio nas ideias de Yves Citton, descreve uma realidade em que o jornalismo já não informa, mas forma públicos — e fá-lo obedecendo à lógica do espetáculo, da atenção, da performance. A democracia deixa de ser o governo do povo para ser o governo dos públicos, moldados por algoritmos, emoções e fluxos de visibilidade. A “máquina de ganhar eleições” é também, então, uma máquina de fabricar consenso, distração e ruído.
O papel do jornalista, outrora vigilante, tornou-se mais próximo do comentador automático, domesticado pelo ciclo noticioso e pela necessidade constante de opinião. São estes mesmos comentadores, amplificados por televisões e jornais, que ajudam a manter a ilusão de explicação enquanto o verdadeiro motor da política — o mediático — se mantém inquestionado.
Mais inquietante ainda: os media deixaram de ser vigilantes do poder para se tornarem ele próprios uma forma de poder — silenciosa, naturalizada, omnipresente. Quando tudo é entretenimento, tudo é diluído. Até a política.
A frase de encerramento da crónica é o verdadeiro diagnóstico: “uma Máquina que traduz toda a informação em propaganda.” O jornalismo, neste quadro, é absorvido pela lógica da atenção e torna-se mais propagandístico do que crítico — mais cúmplice do que resistente.
Talvez seja esse o gesto mais político que esta crónica nos oferece: o de voltar a ler. Ler com tempo. Ler com crítica. Recusar a velocidade e o ruído. E, quem sabe, reinventar o jornalismo como lugar de fricção e pensamento — e não apenas como mais uma engrenagem na máquina de ganhar eleições.


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