Não foi profecia nem vaticínio,
nem cartas lançadas sobre pano velho —
foi andar por aí, calcorrear silêncio,
e ouvir a raiva a fazer-se conselho.
Não são vinte por cento de sombras do passado,
não são todos fantasmas de botas e fado.
Há quem grite porque ninguém escutou,
quem tropece na dor que o tempo calou.
Confundem-se causas com monstros de feira,
misturam-se mágoas com a poeira
dos dias vividos sem voz nem chão —
e ninguém estende a mão.
O insulto fácil, a rima certeira,
o post partilhado sem bandeira,
a sátira burra que alimenta o cão
que depois morde a razão.
Do púlpito urbano, fala-se em nome da moral,
mas não se vê a aldeia real.
Zombam dos ventres que não lêem jornais,
mas nunca lhes perguntam o que ficou para trás.
Na escola, a saudação erra o tempo,
nas redes, o algoritmo é templo.
E os jovens, órfãos da palavra justa,
fazem eco da raiva mais robusta.
A esquerda sonha com manuais vencidos,
a direita pisca olhos aos ressentidos.
Uns com cartilhas, outros com gravatas,
todos esquecem as mãos que ficaram vazias nas matas.
Não confundas o grito com o grilhetar,
nem o voto com vontade de matar.
Talvez só queiram existir no mapa,
ver que alguém os escapa.
Mas o jornal, cão de outrora,
ladra hoje para a câmara e vai embora.
E a reportagem que devia ser pão,
é só circo, eco, confusão.
Há um país que não cabe na capital,
que se escreve em cadernos marginais.
E se não o lermos com olhos atentos,
veremos crescer os tormentos.
Reconciliar não é calar,
mas escutar sem julgar.
Trazer para o centro quem ficou de lado,
dar voz a quem foi silenciado.
Não se constrói a democracia de esporas calçadas,
nem se vence o ódio com gargalhadas.
É preciso descer da burra,
falar com o Shrek da rua escura.
Há um país para conquistar, sim,
mas começa no fim:
onde ninguém olha, onde ninguém chega —
aí onde o desespero se achega.


Deixe um comentário